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Maria Felipa

por Ana Paula Moreira
Desenho de Ariyoshi Kondo para ilustrar o conto de Ana Paula Moreira.

Ana Paula Moreira nasceu em Uberlândia e há 15 anos vive no interior de São Paulo. É doutora em Psicologia, trabalha como professora e também atua na clínica a partir da Psicologia Histórico-Cultural. Em 2023 publicou pedra antiga da tristeza pela editora Claraboia.


Dizem que medo é coisa que vive no escuro, bicho que te espreita em silêncio quando cai a última ponta do dia e depois te invade os poros experimentando os dentes no avesso da sua pele. Mas não. Não é assim. Na noite é que o medo descansa. Sei disso porque fui desenhando no corpo a reza da minha avó Maria: quando a noite é mais grossa, no alto da madrugada, é que logo clareia. 

É uma brecha do quase, a boca da véspera, o antevoo de uma ave muito antiga que vive no instante que há logo depois do escuro e bem antes do dia. Ali, de olhos abertos, eu me juntava às mulheres que fizeram a vida com as mãos, desfiando um rosário de querer o que não chega.

Eu ainda era só uma menina quando aprendi esse exercício de coragem, coragem de ter fé. Um rumor nas paredes me entregava os sussurros daquela mulher da minha alma. E eu ia acordando devagar, sem espantar a matéria do sonho, protegendo a fome e a febre, uma urgência da palavra muito velha, guardada no peito da minha Maria.

Buscando o passo do nosso mistério eu a encontrava sentada na cama, a janela aberta desenhando uma moldura de espera e eu não sabia, mesmo que apertasse meus olhos, onde começava a noite e onde terminava o corpo dela. Sem fazer o menor movimento com a cabeça, ela me estendia a mão e eu me sentava ao lado de uma solidão de multidões.

Aquele era um tempo de antecedências. Estávamos em cima de uma terra preta, a única gente que somos, a única gente que ainda existe, escavando do chão nossa existência larga. Minha avó me ensinou tudo: o que comer só depois de plantar, a temperatura certa da água no pote para beber a goles pequenos quando o estômago dói, o quanto esperar antes de dizer uma tristeza em voz alta e o ritmo da água que é casa de peixe.

Maria era, dentro do imenso que respirava nela, uma pescadora como nunca mais vi. Isso porque pescar é uma linguagem. Há que se ouvir os segredos dos fundos. Há que se pedir a permissão das margens. E antes de tudo, antes de qualquer coisa, há que se deixar conhecer pela terra por onde corre a água. Primeiro você se entrega. Depois você pede.

Aquele ofício também era nosso para dividir. Ela foi me ensinando no gesto, as mãos nas redes trançadas por ela só para aquele sagrado. Pescávamos justo nas horas miúdas: ou no anúncio da aurora ou na ocasião da despedida, lusco-fusco, quando a vista fica mais apurada, recolhendo as sobras nas beiradas do açude.

Minha mulher preta conhecia língua de peixe, uma palavra molhada. Anzol nunca usou porque não era afeita a sangue derramado à revelia de precisão. E não se espante quando te digo que peixe também conhecia a língua dela. Vez em quando, pés afundados na areia, a água lambendo aqueles joelhos cansados, ela erguia as sobrancelhas acolhendo a notícia de algum espanto, ficava sabendo de alguma má querença, uma ou outra maleita e aí, segurando um punhado de gotas nas conchas das mãos, ela emendava as palavras certas num fio de miçangas da memória: com dois eu te vejo, com três eu te encanto, em nome do pai, do fio e do espírito santo.

E depois me olhava bem por dentro e a voz era uma flecha: a palavra é que faz e desfaz, fia, vai com ela compondo seu destino. E eu ia escrevendo com meu pulso tudo o que vinha dela. Até que um dia a água nos nossos pés fez uma tempestade. Era notícia do tráfico da nossa gente. Tráfico é quando se deseja matar nos outros tudo aquilo que te corta a carne e você finge que não vê. É uma bota afiada que te invade a garganta, te poda nas raízes e chuta as sobras.

É a guerra da guerra. E só digo isso porque eu já conhecia a disputa e seu gosto amargo de poder que aparta. Aí é que o medo vigora, à olhos vistos, embrulhando o óbvio nas esquinas. O medo é o oposto de uma mulher. À luz do dia é que ele dança, dentro dos homens é que ele mora. É por isso que além da vida recebi da minha avó também o nome: Maria. E uma ideia de revolução: Felipa. Feito de um avô, que só conheci pela falta. Dentro dela ele era só uma promessa de amor, uma marca de abandono. Tudo num detalhe. Um homem chamado Felipe que atravessou o corpo da minha avó e ela me entregou com as mãos transformado em nós: Maria Felipa. Sem dizer ela me entregava uma arma. A ave antiga sobrevoava o humano para antever minha luta.

Eu era qualquer coisa entre uma menina e uma mulher quando me extirparam daquele meu útero a preço nenhum. Um oceano de sangue me empurrou para o fundo de um continente insuspeito. Mas, em terra alguma eu seria estrangeira. Minha Maria é a madrugada que me abre os olhos por dentro e com os pés dela eu pisei naquele Brasil.

Acontece que em cima da terra os homens despejam seus absurdos e muito pouco de nós nos resta. A tortura é uma ganância com pressa e eu fui crescendo enquanto meu corpo se quebrava. Mesmo assim, juntei esse sopro de nada para acender uns motivos de seguir vivendo. Itaparica era uma ilha com desejos de vila e nela estavam a minha gente, todas num mesmo Espírito. O que importa só cresce nesse ajuntado porque coragem é palavra que se faz no plural. A luta é uma fresta. Um levante começa no escuro. E foi assim que começamos uma anti-guerra.

A agonia do trabalho sugado dos nossos corpos gastava todas as horas de um dia. Depois, fazíamos do fim um começo. Nos juntávamos na borda do mar e eu ia falando devagarinho uma língua salgada. Ensinava àquele pequeno povo o que precisa um corpo para ouvir o murmúrio gravado na água. A nossa morte tinha o nome de Colônia e se dispunha nos cascos de madeira apodrecida das embarcações que nos sitiavam. Era uma prisão feita paredes invisíveis. E sangrava nossa carne exposta numa festa crua.

Uma noite depois da outra fomos nos juntando, nos remendando nos espaços abertos dos nossos corpos fora de nós até que eu finalmente escrevi o destino, enredando segredo de fazer fogo no meio do silêncio. Naquele tempo, na noite seguinte eu derrubaria uma a uma daquelas embarcações. Só para fazer valer a minha revolução. E fiz.

De tanto saber das línguas, eu também fui me fazendo com esta portuguesa. Dos meus pensamentos sujos de terra eu paria uma letra nova para chamar-lhe brasileira e te escrever essa palavra antiga que nasceu agora.


Desenho de Ariyoshi Kondo.

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